10 de jul. de 2020

Teu saber tem quantos dialetos?


"Seu conhecimento acadêmico chega na periferia?"








Com a foto desta frase pichada no muro, minha bolha acadêmica das Ciências Sociais pirava em debates no mural do Facebook. Por um tempo não me meti na discussão, pois como educadora e cientista social, me faço esta pergunta sempre. Porque é necessário sempre fazê-la
Teve gente que militava consciente no lugar de fala que possui. Outros se perdiam no discurso querendo assumir posturas que não lhes pertencem num movimento de cosplay periférico. E haviam aqueles que juraram com punho em riste que levar saberes acadêmicos para as periferias não seria de muita valia visto que muitos termos seriam incompreendidos. Sério isso, brother? Mas que língua você fala?

Com este espaço de fala que possuo e que, nos últimos posts foi lindamente ocupado por potentes existências de nossos tempos, decidi aqui trazer o que penso disso. E estas reflexões só foram possíveis a partir de algumas vivências que tive. Mais do que isso: De alguns muitos encontros que me permiti e a mim foram permitidos.

Em primeiro lugar, gostaria de trazer a questão do acadêmico colonizador. Diante da possibilidade do acesso aos estudos, é muito fácil cairmos neste lugar de missionários do Saber. Pode ser por boas intenções, por ego ou pelo preciosismo de nos demarcarmos neste lugar entendendo que aquilo que os livros nos deram é o único saber possível e verdadeiro. Agindo assim, estamos mesmo neste movimento de troca que a educação nos permite e nos nutre?

Para além disso, pensarmos que este saber que carregamos não seria assimilado por outros centros de protagonismo é fazermos um pensar de mundo muito fechado, nos trancando nele e em tudo aquilo que combatemos. Não só devemos combater a concentração de riquezas, mas também a de saberes. Se não nos dispusermos a pensarmos como nos comunicarmos com toda a ferramenta que possuímos e como nos abrir para entender que o Saber se encontra de várias formas e em muitas culturas, não estamos fazendo nada além de girarmos a roda da manutenção de uma engrenagem que combatemos.

Se compreendermos que o saber é centrado a partir de cexistências múltiplas, entenderemos que ele pode ser produzido de muitas formas e por muitos povos. Assim, o centro deixa de ser visto como único e exclusivamente a Academia e passa a fazer parte de uma ciranda de conhecimento  personificado numa anciã indígena que carrega a história oral de seu povo, nas produções das quebradas que multiplicam as vozes das juventudes e seus protagonismos, nas terras quilombolas e seus ciclos de resistir. Nesta extensa compreensão da produção e existências, periferia é o centro e periféricos são aqueles que se limitam a tapar os ouvidos para esta sinfonia de códigos e línguas faladas dentro dos saberes.

Eu queria ilustrar este post com duas dicas que aquecem meu coração de educadora: Audino Vilão e os Funkeiros Cults. 

Audino é a identidade de Marcelo Marques, estudante de História que reside em Paulínia. Seu sonho é ser professor. Foi com ele que pela primeira vez Nietzsche foi condecorado com o título de Roba Brisa e o Mito da Caverna de Platão chegou nos becos e vielas. Seu canal do Youtube traz obras clássicas narradas pelo olhar das quebradas. Uma forma linda de se dizer que é possível compreender muitos dos pensares que mudaram o mundo a partir da comunicação respeitosa sobre a vida, as emoções e a realidade perfeitamente compreendida pela galera.

Audino Vilão: O Mito da Caverna para Becos e Vielas






Os Funkeiros Cults é uma página em que a galera busca obras clássicas, faz uma foto de oclinho escuro e posta com uma legenda sobre o que entendeu do texto. Conheci pela postagem sobre "A metamorfose" de Kafka e aí não parei de seguir. Dos posts nasceu um grupo no Facebook que, para além de incentivar as leituras que viram memes, grupos de professores fazem parte ajudando a população na mediação de leituras, dicas para vestibular e discussões sobre a realidade. Para participar do grupo, é necessário deixar suas intenções. A primeira postagem é sobre Cêis tão ligado que funkeiro não é fantasia, né?




As duas iniciativas a mim dizem muito e me ensinam também. Primeiro que mostra a potência das juventudes e das quebradas. Depois, nos ensina como socializar os saberes, como fazer uso de ferramentas que são capazes de serem atrativas para assuntos que parecem ou são feitos para serem inalcançáveis e exclusivos. Para além desta gama de clássicos, esta galera tem trazido à debate muito além. Silvio Almeida (meu Silvinho do Coração) teve uma de suas obras debatidas e homenageadas. Em sua participação no programa Roda Viva, ele confirma o poder de iniciativas como estas mostrando o seu alcance em tornar acessível estes conteúdos.

O caminho inverso também é de muita importância. Olhar com respeito e valor as produções musicais, audiovisuais e tantas outras que narram as histórias vividas nas florestas ou nas vielas não só é necessário como enriquecedor. Temos o dever e o exercício de não deixarmos que um tempo ou um povo seja exaltado por uma História única.

Obrigada, Audino. Valeu Funkeiros.